Um imenso blefe diabólico
Carlos Nougué
Os franceses do século XIII tinham atingido, também em termos econômicos, o ponto ótimo possível em nosso estado de natureza caída e ferida: sua economia era o que, com toda a propriedade, Hugues Bousquet chama uma “economia mortificada” (cf. “Une économie mortifiée – Les principes et l’organisation des métiers sous le règne de saint Louis”, Avrillé, Convento dominicano de Hayeaux-Bonshommes, Le Sel de la Terre, n. 67, hiver 2008-2009, pp. 106-148). Com efeito, tudo no homem e em suas atividades tem de ordenar-se, ou imediatamente ou como meio, ao seu fim último e bem comum de todo o universo: Deus. Ora, o homem no estado atual não atinge seu fim último sem a mortificação dos sentidos e das quatro potências da alma: a concupiscível, a irascível, a volitiva e a intelectiva. Mas, como o homem não é um ente individual, senão familiar e social, de modo geral e a princípio também depende, para aquela mortificação, de que tanto a família como a sociedade igualmente se mortifiquem. Logo, para atingir seu fim último o homem, de maneira geral e a princípio, também deve mortificar sua economia: porque uma economia não mortificada supõe ou implica uma potência concupiscível não mortificada. Em outras palavras: supõe ou implica o pecado da ganância, a avidez de lucro, a luxúria de riquezas. Supõe ou implica o culto a Mamon (= dinheiro).
Pois, ainda que em embrião, tal culto já estava presente no mesmo século XIII, sobretudo em algumas cidades italianas e flamengas. Ora, como diz o Padre Calderón, a Cristandade não morreu de velhice, porque ninguém morre de velhice na flor da idade. O que ocorreu logo após o ápice da história humana (ou seja, o século do gótico, do Rei São Luís, de Santo Tomás de Aquino) foi a revolta da natureza caída e ferida contra ordenação geral a Deus. A revolta do amor-próprio. A revolta da carne. A revolta da concupiscência. A revolta da ganância. E, graças ao desencadeamento da usura, à ética protestante, à revolução industrial inglesa e à consolidação do capitalismo (incluído o capitalismo de Estado que é o comunismo), tal revolta da ganância teve êxito, e êxito calcado numa mentira: a do igualitarismo, do bem-estar material do conjunto dos cidadãos como fim último do homem. Dupla mentira: uma mais profunda e satânica, porque, como se disse, o fim último do homem não pode ser senão Deus mesmo, e somente Ele; e uma mais rasa e humana, porque, ao contrário do que diz a propaganda, a grande maioria dos homens tem de trabalhar cada vez mais para ter o mínimo material indispensável.
Ora, como dizia Aristóteles, para o homem a felicidade ou beatitude não pode residir senão na contemplação da Divindade. Para tal, ele tem de ter não só um mínimo material que lhe sustente a existência, mas também e sobretudo tempo livre, porque sem aquele mínimo material e este ócio não é possível a contemplação da Divindade. O neg-ócio é a negação do ócio. Santo Tomás de Aquino, conquanto já sabedor de que a felicidade ou bem-aventurança do homem se dá, sim, na contemplação da Divindade, mas como contemplação face a face após a morte, nem por isso deixa de afirmar o mesmo ou quase o mesmo que Aristóteles: o homem tem de ter não só aquele mínimo material para o sustento de sua existência, mas também tempo livre, e ambos em ordem à contemplação dos mistérios da divindade por trás dos véus da Fé. E, com efeito, os franceses em sua economia mortificada do século XIII tinham conseguido ambas as coisas: aquele mínimo material e este tempo livre. O que aconteceu após a referida revolta da carne? O homem passou a querer um máximo material (sempre crescente, como cabe a uma luxúria), ainda que ao preço de sacrificar cada vez mais seu tempo livre, seu tempo de contemplação da Divindade. E hoje, de fato, a imensa maioria dos homens padece essa situação elevada à máxima potência, mas não igualmente. Sim, porque o igualitarismo é um blefe: não vivemos numa democracia econômica, mas sob um regime plutocrático fantasiado de igualitário. Em que época do mundo houve algo semelhante à distância econômica que há entre este que vos escreve e Bill Gates, entre vós que me ledes e os Rockefeller, entre um camponês cubano e Fidel Castro (a quinta maior riqueza do mundo)? Um servo medieval sentava-se à mesa de seu senhor, ainda que na outra extremidade; e um nobre sempre caminhou à beira do precipício da pobreza, donde a existência de numerosas sociedades de socorro a fidalgos empobrecidos. Mas este que vos fala, vós que me ledes e o camponês cubano temos de trabalhar cada vez mais, às vezes até a exaustão, para conseguir (e muitas vezes não conseguir) aquele mínimo material necessário − sempre, insista-se, com sacrifício do tempo de contemplação. Não obstante, também o sacrificam Bill Gates e os Rockefellers, e não raro até mais: que melhor imagem dos superplutocratas atuais que o frenesi de uma bolsa de valores, ainda que dele participem “apenas” através da rede mundial de telefonia e de computadores? Em verdade, em verdade, o culto a Mamon requer o sacrifício também de seus próprios sacerdotes. É, uma vez mais, a cobra que engole a si mesma pelo rabo.
Pois bem, por isto também, porque infelizmente cada vez menos me sobra tempo para meditação, é que deixei de escrever ultimamente para o blog. E, para falar verdade, não poderia estar escrevendo nem este artigo que agora ledes. Por que então o estou fazendo? Por indignação. Explico-me.
O liberalismo, ideologia pegajosa e anti-religiosa por excelência, está hoje enraizado na alma da maioria dos habitantes do Ocidente. E, como toda e qualquer ideologia, tem sua quimera: a democracia liberal (econômica, política e moral). E, como toda e qualquer quimera, a democracia liberal o é em duplo sentido: como impossibilidade, e como monstruosidade. O assunto, contudo, só nos interessa aqui pelo aspecto seguinte.
Com efeito, um dos temas mais importantes da revolução liberal anticatólica foi a liberdade de expressão. Acusava-se e acusa-se a Igreja, sua Inquisição e os regimes políticos católicos de cercear a liberdade de pensamento, quando o que na verdade a Igreja, a Inquisição e os regimes católicos cerceavam, em ordem à salvação das almas, era a liberdade do erro, da heresia e do pecado. “Esmaguem a Infame”, dizia Voltaire do alto de seu ódio ignóbil. No fundo e do baixo de sua carne revoltada, queria sobretudo dizer: “Libertem o Infame!” E, liberto o Infame, sentenciou-se a golpes de guilhotina: todos têm liberdade de expressar o que ditar sua livre consciência. Naturalmente, e precavidamente, dizem os paladinos da liberdade em suas declarações dos direitos do homem que a liberdade de expressão tem um limite: o limite da liberdade alheia. Se alguém, por exemplo, pregar uma ideologia de extermínio racial, já não se beneficiará de tal liberdade. Seja. Mas então qual o problema com a Igreja, sua Inquisição e os regimes católicos, se eles diziam que todos têm liberdade de expressar o que ditar sua consciência, mas com um limite: o limite dos direitos de Deus? Se alguém defendesse algo contra a lei natural ou a lei divina positiva, como, por exemplo, o aborto, já não se beneficiaria de tal liberdade. Afora o fato, sempre escamoteado, de que a Inquisição não tinha jurisdição sobre os não católicos (judeus, muçulmanos, etc.), enquanto a ONU e todos os governos ateus ou laicistas se outorgam uma jurisdição universal, especialmente sobre os católicos…
Ademais, é amplíssima a liberdade de crítica e escárnio à Igreja e à antiga Cristandade. Que filme, que livro, que qualquer coisa não arreganha hoje em dia seu esgar sardônico contra o catolicismo? Que pensadorzinho de meia-tigela atual não verte pelos cantos da boca o mais virulento veneno contra os sacramentos, contra a santidade, contra a virgindade, contra o matrimônio? Quanta ignomínia contra as nossas mais sagradas tradições! Quanta blasfêmia contra a Cruz e a Mãe de Deus! Tal liberdade de crítica e escárnio, porém, dizem os liberais donos do mundo, é permitida porque não tira a liberdade dos católicos (exceto quando se transforma em ação governamental e se proíbe, como na França, a exibição pública dos símbolos católicos, enquanto se permite o uso público dos símbolos muçulmanos…). Façamos, então, por um breve instante, o esforço supremo de conter a náusea e conceder ab absurdo o que propugnam os atuais senhores do mundo: que nos critiquem e escarneçam; estão no seu direito… Mas, então, agentes das trevas, por que o Bispo Monsenhor Williamson, da Fraternidade São Pio X, não pode duvidar do número oficial de judeus mortos sob o regime hitlerista? Ouçam com atenção, caros leitores, o que diz o Bispo na famosa entrevista à televisão sueca, e vejam se em algum momento ele defende o nazismo ou o extermínio de judeus. Em nenhum momento. Apenas duvida (corretamente ou não, isso não vem ao caso aqui), apenas duvida do número oficial de mortos e da existência de câmaras de gás. Logo, ele não atenta contra a liberdade alheia. Além disso, já li que na Idade Média a Inquisição matou 14 milhões de bruxas, ou seja, quase a população feminina inteira da Europa de então, incluídas as parentas dos próprios inquisidores e algumas mais… além de que, segundo Bartolomé de las Casas, os espanhóis mataram mais índios na América que o número de índios que jamais viveu aqui… Se assim é, ou seja, se se pode contra a Igreja aumentar números de vítimas ao bel-prazer de quem quer que seja, por que não pode alguém da Igreja duvidar do número oficial de vítimas judias sob o nazismo?
Eu, de minha parte, repito aqui algo do meu prefácio à Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Martínez Barrera. Ao falar da crueldade do mundo moderno e suas centenas de milhões de mortes, incluía entre estas as da revolução francesa, as das revoluções comunistas, as das duas guerras mundiais, as das bombas atômicas lançadas sobre as duas únicas cidades japonesas com catedrais católicas, e as “do massacre em massa, com requintes científicos de crueldade, de uma raça em nome da ereção de outra, sob as escuras brumas nietzschianas e wagnerianas de certa doutrina germanófilo-gnóstica”. Um católico não pode apoiar, sob hipótese alguma, o extermínio de uma raça ou de um povo, alcem-se as vítimas desse extermínio ao número que for. E não o apóia, de modo algum, o Bispo inglês. (Aliás, acabo de ler por acaso uma entrevista de Monsenhor Williamson a The Angelus Press, de outubro de 2006, p. 33, em que ele diz que as óperas de Wagner oferecem “uma dimensão religiosa sem a fé, um sucedâneo da redenção” que as torna perigosas, e que por isso mesmo tanto agradaram a Hitler…)
Mas, se assim é, por que então a histeria raivosa dos meios de comunicação, dos rabinos, dos governos, dos modernistas e liberais católicos de todo o mundo contra D. Williamson? Por que ele acaba de ser expulso tão ignominiosamente da Argentina, onde ademais a Câmara dos Deputados buenairense infamemente o declara persona non grata? Antes de responder a esse porquê, constate-se: mais uma vez a quimera democrático-liberal se mostra como verdadeiramente é, monstruosa, e torna a abrir suas fauces vorazes.
Respondendo agora ao porquê, deixo que o faça aquele que num e-mail ao Hebdomadario de Panorama Católico Digital de 13 de fevereiro de 2009 escreve o seguinte: “Conheço muito pouco a Fraternidade São Pio X. Conheço menos ainda as lutas internas que existem no Vaticano. Mas com tudo o que se lê não consigo deixar de ficar espantado. Durante essas três últimas semanas, os meios de comunicação puseram a Fraternidade São Pio X – que muito poucos conheciam – na primeira página de todos os jornais. É surpreendente a importância que os inimigos da Igreja […] deram a essa irmandade de não mais de 500 sacerdotes. Por alguma estranha razão têm medo deles. Pressentem que antes de ficar com a Igreja terão de enfrentá-los. E creio que intuem sua derrota… Timeo”.
Por fim, assim como disse um indignado Santo Tomás de Aquino no final de seu A Unidade do Intelecto contra os Averroístas: “Se alguém, gloriando-se do falso nome da ciência, quiser dizer alguma coisa contra o que acabamos de escrever, que não fale pelos cantos nem à frente dos rapazes que não sabem julgar assuntos tão árduos, mas em vez disso escreva, respondendo a esta obra, se tiver coragem”, digo eu aqui, na minha escala de formiga, mas também indignadamente: Você, liberal que vive a defender a liberdade de expressão de satanistas e pervertidos da mais variada e hedionda espécie, por que não vem a público defender esse homem de Deus ignominiosamente perseguido por expressar livremente sua opinião? Por que se cala, liberal? Por vergonha de ser pego em flagrante contradição de princípios? Ou porque, co-partícipe moral do encarniçamento contra tão nobre e indefesa vítima, aparece envilecido no espelho de sua própria alma?
Publicado originalmente no blog “Contra Impugnantes” e revisado pelo autor especialmente para este site.