Tomista ou Tomasiano?
Estamos convencidos de que não se pode filosofar, prescindindo da história da filosofia. Persuadidos, pois, deste princípio, nos encontramos convictos também, de que ninguém – a menos que possua um intelecto acima do normal – pode, em toda a sua vida, estudar com afinco e lisura, toda a história da filosofia. Faz-se mister então discriminar. Ora, optamos pela Idade Média. O não equivale a dizer, que não cuidaremos de estar em diálogo atento, por meio dos nossos textos, também com a filosofia moderna, bem como com algumas tendências filosóficas contemporâneas.
E, no entanto, a própria Idade Média, mesmo não sendo ponto pacífico entre os historiadores, compreende mais de mil anos de uma intensa vida no espírito, com um conjunto de autores e obras de valor desigual. Nela, por conseguinte, privilegiaremos ainda o século XIII. Portanto, seus diferentes e ilibados autores, nos prenderão mais a atenção. Agora bem, no próprio século XIII, há uma vasta literatura filosófica, diversas correntes, num século que se destaca dos outros, precisamente por sua efervescência intelectual.
Mas encontramos nele, pois, um intelecto brilhante, que inaugura uma nova forma de pensamento: Tomás de Aquino. Tomás nos conquistou, suas intuições geniais, fincaram raízes profundas em nossa alma. Dentro do seu contexto histórico, das limitações próprias do seu tempo – limitações que, como sujeito do seu tempo, ele e a sua obra também sofreram profundamente – sua acuidade racional soube, na nossa apreciação, construir uma admirável síntese do real. É a este Tomás, exatamente a quem buscamos.
Portanto, a nossa pretensão, se bem que não vá de encontro, distingue-se nitidamente, daquele uso que a Igreja Católica fez da doutrina de Santo Tomás de Aquino. Também prescinde – sem contudo negar – daquele pressuposto de perenidade e superioridade, dado ao pensamento de Tomás no contexto eclesial, quando este fora comparado com os demais sistemas filosóficos construídos ao longo da história. Situados nesta perspectiva – e sem pretendermos cair no agnosticismo – nos ocuparemos da consecução da coerência interna do sistema do Aquinate, sem nos preocuparmos – num primeiro momento – em estabelecer sua suposta verdade perene frente aos demais autores.
Definindo o espírito humano como uma abertura para o todo, entendemos que Santo Tomás nos coloca frente a uma eloqüente projeção, de como quereria que a sua vida e a sua obra, perdurassem pelos séculos afora. Alguns, aceitando justamente esta tese, revogam o tomismo, por julgar que este seja um corpo de teses, que se caracterizou, exatamente por se situar sempre num plano a-histórico. Conquanto não negarmos esta avaliação, pensamos, no entanto, que o próprio tomismo enquanto movimento, é algo historicalmente datável, e que por isso mesmo, não pode ser completamente olvidado, sem prejuízo do aspecto histórico. Por conseguinte, tão logo nos demos conta do alcance do postulado de abertura de Tomás, descobrimos que não se pode renegar as contribuições, inclusive as do tomismo. Por isso, se declaramos a insuficiência da carapaça manualistíca, não descartamos e até alertamos que não se pode descurar, das suas inegáveis pertinências.
O que afirmamos, é que o debate apologético – sobre qual seja o mais perfeito sistema de pensamento da história – dentro do âmbito filosófico, tem-se mostrado estéril. Com efeito, se o que colocamos é a abertura, tal abertura deve acolher a toda intervenção positiva, que venha a corroborar na reconstrução histórica, e na reconstituição vivaz do pensamento de Tomás. E isto deve ser reconhecido, até mesmo se tal mérito se deve, em parte, ao tomismo tradicional. Por isso, acreditamos que não se deve desconsiderar, a terminologia tomista posterior, cunhada e autorizada pelos mais abalizados comentadores, ao menos enquanto esta se atenha fielmente a Tomás. O que se tem que distinguir, é a atitude de certos tomistas, que supõe o pensamento de Tomás como “a verdade”, e partem, de antemão, fechados ao significado dos demais sistemas.
Dada esta disposição, ainda outra nos anima. Tomás não constituiu o seu sistema sozinho. Uma nuvem de testemunhas, tanto no que se refere ao edifício da cultura pagã, quanto no que toca ao oriundo do universo cristão, ajudou-lhe a tecer os liames e os traços do seu pensamento. Por isso, se se quer alcançar, o autêntico e original no pensamento de Santo Tomás, há que se apropriar o historiador criterioso – ao menos em suas linhas gerais – daquele arsenal de conceitos e estruturas, que se foi delineando, desde os primórdios da filosofia e do próprio cristianismo, por meio dos textos dos grandes clássicos do passado.
Já se deixa entrever que Tomás, como de resto, qualquer autor clássico, para ser interpretado corretamente, precisa de um método, ou seja, de um pensamento ordenado e disciplinado. Pode parecer insosso e até inócuo o trabalho de reconstrução dos silogismos e dos autores que precederam Tomás. Entretanto, tal trabalho é essencial do ponto de vista histórico, para o reconhecimento do específico e verdadeiro perfil filosófico de Tomás. Entre o silogismo e a sua repetição com as nossas palavras – neste interstício, precisamente – se encontra justamento o conhecimento, que se dá pela apropriação da linguagem e pela ordenação dos conceitos do autor em estudo.
Ademais, segue-se disto, o adendo de que é somente a insistente e paciente releitura dos textos, que nos pode fixar uma adequada visão de conjunto, do sistema investigado. Num primeiro trato, todos os sistemas parecem ser iguais ou pelos menos, apenas com nuanças diversas. No entanto, quando o penetramos mais profundamente, é que descobrimos a argúcia do seu autor e o arrazoado essencial que o torna ímpar com relação aos demais. É por isso, que “Repetitio mater studiorum” (A repetição é a mãe dos estudantes).
É, pois, seguindo com honestidade intelectual, passo a passo este caudaloso itinerário, que chegaremos, muito provavelmente, à assinatura de Tomás e à novidade do seu pensamento. É um trabalho, sem dúvida, árduo e solitário, mas imprescindível, ao menos se quisermos obter o resultado que esperamos: a face e o semblante de Tomás de Aquino. Trilhando-o sem paixões desmedidas, esperamos desencadear um processo de reconhecimento das conquistas deste espírito criativo, que foi Santo Tomás de Aquino. Portanto, nem tomista, nem tomasiano, queremos simplesmente Tomás!
Também adotaremos um procedimento próprio, ao nos aproximar-mos de Tomás. Muitos são os legítimos vieses pelos quais se pode ler a obra do Frade Mendicante: seja adotando uma hermenêutica, que busque na terminologia tomista posterior o seu critério último, seja verificando o contexto histórico-cultural específico em que o texto foi escrito, seja, ainda, lendo-o à luz de toda história da filosofia. Nenhum destes procedimentos será olvidado por nós – temos visto, antes, o quanto nos importa a leitura do texto filosófico, dentro da história da filosofia – porém, com nenhum deles nos identificamos enquanto tal.
A. Massoulié, teólogo dominicano, cunhou a frase que cumprirá seguirmos: “Divus Thomas sui interpres.” Importa que o façamos, tentando sanar as dificuldades encontradas num determinado texto do Aquinate, buscando esclarecê-las, pois, por meio de outros textos análogos, onde a questão esteja mais clara e possa ser dirimida toda dúvida. E aqui entra um pressuposto fundamental, a saber, que um texto filosófico nunca deve ser classificado como “lido”, mas sim como um texto freqüentado. Isto é, o dever das “releituras”, é uma categoria essencial ao trabalho filosófico. É no mínimo temerário e suspeito, a atitude daqueles que se dão por satisfeitos, na primeira leitura que fazem de um texto filosófico, sobretudo se for o de um autor clássico.
Tal análise – qual seja, a partir do texto – entretanto, não nos levará, a uma leitura fundamentalista ou a-histórica do pensamento de Tomás. Nossa opção, nos fará sim, primar pelas fontes, quais sejam, as obras mesmas do Aquinate, deixando a bibliografia – os comentadores – apenas para confirmarem, aquilo que já havíamos constatado nas fontes. Por isso, os questionamentos devem ser respondidos, numa expressão que iremos sempre retomar: “em Tomás”.
Segundo cremos, por meio de uma exegese criteriosa dos textos de Tomás, é possível ainda localizar certos saltos lógicos em sua obra, certas idéias presentes somente nas entre linhas do seu pensamento, que nos permitirão, por sua vez, acessar o que era tido por evidente, e, portanto, sem necessidade de ser comprovado ou mesmo expresso, visto que já admitido por todos, na cultura cristã na qual Tomás de Aquino se encontrava inserido. Acreditamos que através deste denodo com o texto do Boi Mudo da Sicília, tornar-se-á enfim possível – desde este ponto de vista – de certa forma ultrapassá-lo – isto é, ultrapassar o texto escrito enquanto tal – e chegar mesmo ao elemento histórico-cultural, no qual se funda o mesmo texto do autor. Desta sorte, será, pois, por meio de uma adequada análise da linguagem – que nós empreenderemos com cautela – que poderemos tomar nota, com maior precisão e especificidade, daquelas idéias basilares e geratrizes, procedentes da cultura e da tradição, que se apresentam como subentendidas e pressupostas nos volumes do Aquinatense.
Ora, estamos convencidos – porquanto nos reconhecemos devedores do magistral filósofo alemão Josef Pieper – que é na linguagem, na cultura e nas próprias instituições, que subjazem as experiências mais genuínas e marcantes do espírito humano. Desta feita, é, pois, quando alcançamos a verdadeira etimologia das palavras, ou quando conseguimos decodificar uma intuição reguladora registrada nela, que então nos deparamos, com a vivaz percepção das mais profundas experiências humanas. Sem embargo, estamos convictos que é na linguagem adotada pela cultura popular ou nas próprias camadas institucionais, que se encontram, como que cristalizada, as mais vivazes experiências do homem. Aliás, é por isto também que estamos certos, que Tomás privilegia, dentro dos aspectos da sua reflexão, a terminologia e a cultura popular, atendo-se de forma crítica à gênese das palavras.
É sob esta perspectiva finalmente, que a leitura das obras do Frade Mendicante, permanece sempre atual e nada historicista, pois ela trata de perseguir aquelas intuições basilares, bem como aqueles valores, que constituem o núcleo antropológico das experiências fundantes da nossa tradição ocidental. Caberá, pois, a nós, homens do século XXI, meditando sobre estas “descobertas arqueológicas”, trazê-las para a nossa atualidade tão complexa, confrontando-as com os acontecimentos que atordoam as vicissitudes do nosso presente.
Por uma opção pessoal, cuja tese ainda estamos por consolidar e confirmar – já que estamos em pleno processo de formação intelectual – tudo convergimos em nossa pesquisa, para determinados temas da filosofia de Tomás. Circunscreveremos, pois, todas as nossas abordagens, num discurso organicamente voltado e disposto para a “teologia natural”, bem como para as relações entre “fé e razão” e “filosofia e teologia” no Aquinate. Esforçar-nos-emos, destarte, por convencer e persuadir os leitores, que os pólos do pensamento de Tomás Aquino, se delimitam – prendendo-se como em seus extremos – nestes temas, o que não quer dizer que se exaurem ou se esgotem neles. Tampouco isto significa, evidentemente, que descuidaremos da postura e da posição que ocupa, dentro da obra de Tomás, a antropologia, a teoria do conhecimento, a ética, a política, etc.
Uma advertência faz-se pertinente aduzir. Na busca de uma leitura que aponte para a obra de Tomás, como o mais bem resolvido sistema elaborado dentro do amplexo do que se pode chamar de “filosofia cristã”, tentaremos – com a finalidade de salientar exatamente a originalidade deste sistema – distingui-lo dos demais, precisamente em sua singularidade.
Dentro desta perspectiva, é da nossa alçada tentar ultrapassar ainda – sem desconsiderar – certa linha de leitura orientada por uma lógica religiosa casualística, que tem dominado, pois, alguns especialistas em Tomás ao longo dos tempos, bem como ligado o nome deste autor, a preconceitos injustos dentro da própria história da filosofia.
Tal abordagem consiste num discurso que, conquanto acentue a singularidade do pensamento de Tomás, parece vir sempre acompanhado de um olhar pejorativo para a história da filosofia, que se manifesta numa avaliação negativa dos demais sistemas filosóficos, julgando-os sempre à luz de um suposto “tomismo”, nem sempre suficientemente aberto ao diálogo, ou ao menos disposto a demonstrar as suas notas de veracidade e atualidade.
Neste sentido, impede-se a inserção de Tomás dentro da tradição filosófica e se dificulta a percepção de continuidade do seu pensamento, nas influências que eventualmente este exerceu sobre os demais sistemas. Em outras palavras, este tipo de literatura, não consegue marcar a originalidade da obra de Tomás, a não ser em detrimento das demais. Esta posição não é, pois, definitivamente a nossa.
Lembramos ainda que temos nível de graduação e que embora estejamos sempre procurando estudar o máximo possível, munindo-nos de leituras prévias, longe de nós pretendermos ser exaustivos em quaisquer dos nossos títulos. O que não acarreta, vale lembrar, que uma economia irresponsável, vá tornar desproporcionadamente despretenciosos os nossos textos. A maioria deles – é bom que se diga – são, em verdade, documentos, anotações e fichamentos, que servem, por seu lado, para uma iniciação, ou seja, para um primeiro contato introdutório com o autor em questão. Todos os nossos textos, por conseguinte, por sua própria natureza, estão sujeitos a futuros aperfeiçoamentos.
Somos Católicos, mas não somos confessores, nem ligados ao clero. Quem procurar, pois, em nossos textos, por dogmática católica, certamente irá se frustrar. Certos textos, portanto, se lidos teologicamente, podem se apresentar como muito incompletos e até comprometedores; contudo, se o leitor se ativer ao objeto de estudo por ele proposto, verá que pode estar bem orientado e que preenche certos requisitos de inteligibilidade.
Enfim, o nosso site espera ser um modesto espaço para o exercício do pensamento. E o exercício do pensamento, consiste em conseguir pensar com o autor, até ao ponto de permitir-se pensar diferente do que se pensa, para entender o que outrem pensa. Quando assim nos adentramos num texto filosófico, acabamos sentindo este texto. Deveras, desta forma, ele nos toca, seu autor nos esgota, e tudo se torna vivo para nós. Doravante, o que produzirmos a partir desta experiência, será também um escrito vivo e aberto, fruto de um espírito livre.
Após este breve contorno, que aspira ter o caráter de uma justificativa para esta indústria, acreditamos poder trazer a lume a nossa modesta empresa.
Com o máximo respeito
Imenso abraço,
Sávio Laet.
Laudetur Iesus Christus!