O Adorador do Diabo
por G.K. Chesterton
Traduzido por Pedro Erick
De vez em quando eu narro alguns fatos nos meus textos. Coisas que realmente aconteceram, como a reunião com o Presidente Kruger ou ser jogado para fora de um táxi. O que vou mencionar agora realmente ocorreu: embora não haja nenhum evento político ou de perigo pessoal. Foi apenas uma simples conversa que eu tive com um outro homem. Mas esta simples conversa foi de longe a coisa mais terrível que ocorreu na minha vida. Aconteceu há muito tempo atrás, não consigo recordar as exatas palavras do diálogo, apenas as principais questões e respostas; mas há uma sentença na conversa que eu recordo palavra por palavra. Foi uma sentença tão desagradável que eu não consigo esquecer mesmo se quisesse. Foi a última frase falada; e não foi dirigida a mim.
O fato me aconteceu na época que eu frequentava uma escola de arte. Uma escola de arte é diferente de quase todas as outras escolas ou faculdades: sendo de criação nova e bruta e de disciplina frouxa, apresenta um grande contraste entre o trabalhador e o ocioso. As pessoas em uma escola de arte ou fazem uma quantidade atroz de trabalho ou fazem nada. Eu pertencia, junto com outras pessoas encantadoras, a esta última classe; e isso me jogou muitas vezes na sociedade dos homens que eram muito diferentes de mim e que eram ociosos por razões muito diferentes das minhas. Eu era ocioso porque eu estava muito ocupado; Eu estava envolvido em descobrir, para meu próprio extremo e duradouro espanto, que eu não era um ateu. Mas havia outros também como pontas soltas que estavam envolvidos em descobrir o que Carlyle chamou (acho que com delicadeza desnecessária) do fato de que o gengibre é quente na boca.
Eu valorizo aquele período, em suma, porque me fez conhecer um bom número representativo de pessoas sem qualquer moral. Neste contexto, há duas coisas muito curiosas que o crítico da vida humana pode observar. O primeiro é o fato de que existe uma diferença real entre os homens e as mulheres; as mulheres preferem falar em grupos de dois, enquanto os homens preferem falar em grupos de três. A segunda é que, quando você encontra (como costumam fazer) três jovens canalhas e idiotas que andam juntos e se embebedam juntos todos os dias você geralmente acha que um dos três canalhas e idiotas (por alguma razão extraordinária) não é um canalha ou idiota. Nestes pequenos grupos dedicados a encher a cara há quase sempre um homem que parece que está condescendendo com a companhia; um homem que, ao mesmo tempo pode falar trivialidades com seus companheiros, mas também pode falar de política com um socialista, ou filosofia com um católico.
Assim era o homem a quem eu vim a conhecer muito bem. Era talvez estranho que ele gostasse da bebedeira e de ficar sujo, e mais estranho ainda que ele gostasse de conversar comigo. Por horas dos dias ele iria falar comigo sobre Milton ou arquitetura gótica; por horas da noite ele iria onde eu não tinha nenhum desejo de acompanhá-lo, mesmo em especulações filosóficas. Ele era um homem com um rosto comprido e irônico, cabelo curto e vermelho; ele era de alguma forma um cavalheiro, e poderia caminhar como um, mas preferiu, por alguma razão, andar como um lacaio levando dois baldes. Ele parecia um tipo Super-jockey; como se um arcanjo tivesse ido para o Turfe. E eu nunca esquecerei a meia hora em que ele e eu discutimos sobre coisas reais pela primeira e última vez.
Em frente ao grande edifício que ficava nossa escola tinha uma grande escadaria de pedras, mais alta, penso eu, do que aquela que leva até a Catedral de São Paulo. Em uma noite de inverno escura, ele e eu estávamos andando naquela escadaria, que parecia tão triste como uma pirâmide sob as estrelas. A única coisa visível abaixo de nós na escuridão era um fogo que queimava e soprava; algum jardineiro (suponho) estava queimando alguma coisa no terreno, e de vez em quando as faíscas vermelhas passavam girando por nós como um enxame de insetos escarlate no escuro. Acima de nós, havia escuridão; mas se alguém olhasse por tempo suficiente para a escuridão iria ver listras verticais de cinza na cor preta e, em seguida, iria tomar consciência da fachada do edifício colossal dórico, fantasmagórico, mas enchendo o céu, como se o Paraíso fosse dominado por um fantasma gigantesco do paganismo.
O homem perguntou-me abruptamente por que eu estava me tornando ortodoxo. Até aquele momento, eu nunca tinha percebido que eu era um ortodoxo; mas no momento em que ele perguntou eu percebi que era verdade. E o processo tinha sido tão longo e cheio que eu respondi-lhe de imediato com os graus de explicação.
“Eu estou me tornando ortodoxo,” eu disse, “porque eu cheguei, com ou sem razão, após o alongamento de meu cérebro até que explodisse, à velha crença de que a heresia é pior até mesmo do que o pecado. Um erro é mais ameaçador do que um crime, porque o erro gera crimes. Um imperialista é pior do que um pirata pois um imperialista mantém uma escola para piratas,.. ele ensina pirataria desinteressadamente e sem um salário adequado. Um “free lover” é pior do que um libertino. Pois um libertino é grave e irresponsável, mesmo no mais curto relacionamento, mas um free lover é cauteloso e irresponsável, mesmo nos seus longos relacionamentos. Eu odeio a dúvida moderna porque ela é perigosa.”
Ele então falou com voz maravilhosamente mansa:”Você fala perigoso em termos da moralidade. Eu acho que você pode estar certo, mas por que se importar com moralidade?
Eu dei uma olhada rápida para o rosto dele. Ele esticou o pescoço como ele tinha mania de fazer e sua face se dirigiu abruptamente em direção à luz do fogo abaixo, como um rosto na ribalta. Seu queixo comprido e suas maçãs do rosto ficaram iluminadas infernalmente; de modo que ele parecia um demônio olhando para o poço em chamas. Eu tive a estranha sensação de ter sido tentado no deserto, e naquele momento faíscas saíram fortemente do fogo.
“Estas faíscas não são esplêndidas?”, eu disse.
“Sim,”, ele respondeu.
“Isso é tudo que eu vou lhe pedir para admitir”, eu disse. “Dê-me aquelas poucas manchas vermelhas e vou deduzir a moral cristã. Uma vez eu pensei como você, o prazer é como uma faísca voando, vem e vai como aquela centelha. Uma vez eu pensei que o prazer era tão livre como o fogo. Uma vez eu pensei que a estrela vermelha que vemos estava sozinha no espaço. Mas agora eu sei que a estrela vermelha é só o ápice de uma pirâmide invisível de virtudes. Aquele fogo vermelho é apenas a flor em uma haste de hábitos de vida, que você não pode ver. Só porque sua mãe fez você dizer “obrigado” ao receber um pão, você é agora capaz de agradecer a natureza ou o caos pelas estrelas vermelhas por um instante ou pelas estrelas brancas em todos os tempos Só porque você era humilde diante fogos de artifício sobre o cinco de novembro você agora pode desfrutar qualquer fogos de artifício que você tenha chance de te ver. Você gosta que eles sejam vermelhos por lhe falaram do sangue dos mártires;. você apenas pode ser como eles, sendo brilhante, porque o brilho é uma glória. Essa chama floresceu de virtudes, e ele vai desaparecer com virtudes. Seduza uma mulher, e aquela centelha será menos brilhante. Derrame sangue, e aquela centelha será menos vermelha. Seja realmente uma pessoa ruim e a centelha será para você apenas pontos em um papel de parede.”
Ele tinha um raciocínio horrivelmente justo o que me fez desesperar pela sua alma. Um ateu comum inofensivo negaria que a religião geraria humildade ou definiria humildade como simples diversão, mas ele admitia ambas as coisas. Ele apenas disse: “Mas eu não hei de encontrar no mal uma vida em si mesmo. Admitindo-se que para cada mulher que eu arruinar uma daquelas faíscas vermelhas vão sair: não será o prazer de expansão da ruína …”
“Você vê aquele fogo?” Eu perguntei. “Se tivéssemos uma democracia que combatesse realmente, alguém iria queimar você naquele fogo, como um adorador do diabo que você é.”
“Talvez”, disse ele, à sua maneira meio cansada, justa. “Só que o que você chama de mal eu chamo bem.”
Ele desceu a escadaria sozinho, e eu senti como se eu quisesse varrer e limpar os degraus da escada. Eu segui adiante, e como eu fui procurar o meu chapéu la embaixo na passagem escura, onde ele estava, de repente eu ouvi a voz dele de novo, mas as palavras eram inaudíveis. Parei, surpreso: então eu ouvi a voz de um dos mais vis de seus companheiros, dizendo: “Ninguém pode saber”. E então eu ouvi essas duas ou três palavras que eu me lembro de cada sílaba e não pude esquecer. Eu ouvi o adorador do diabo dizer: “Eu digo a você que eu tenho feito de tudo. Então eu deveria saber a diferença entre o certo e o errado.” Eu andei apressado sem parar, e quando eu passei pelo fogo eu não pude saber ser era o inferno ou o furioso amor de Deus.
Eu já ouvi dizer que ele morreu: foi dito, eu acho, que ele cometeu suicídio; e que ele fez com objetos do prazer, não com ferramentas que provocam dor. Que Deus o ajude, eu sei a estrada que ele caminhou; mas eu nunca soube, ou mesmo me atrevi a pensar qual foi o lugar que o fez parar e se conter.
Fonte: http://thyselfolord.blogspot.com.br/2014/06/chesterton-e-o-satanismo.html